Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?

Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:

em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.

Ao que parece entraremos na história mundial como novos construtores de "muros da vergonha", como já não bastasse a lógica dos condomínios, ruas e casas gradeadas e supervigiadas. Desta vez, optou-se para transformar algumas comunidades pobres em presídios abertos.

Os dois mais importantes muros polêmicos da atualidade demarcam a fronteira da imigração entre o México e os EUA e separam Israel dos territórios dos palestinos. Não são conhecidos pelo nome de muros da vergonha, apesar de lembrar o que separava a Alemanha em dois países, em pé, entre 1961 e 1989. Este último, quando derrubado, representou a crise final do socialismo realmente existente e a abertura da denominada cortina de ferro. 

Durante décadas, a propaganda anticomunista tratou do caso com muita proficiência. Mais do que qualquer outro símbolo, o denominado pelas mídias da época de ‘muro da vergonha’ serviu para atacar o socialismo real em uma de suas maiores fragilidades. Ser um cidadão do Leste europeu significava não ter direito ao livre trânsito na Europa e no mundo. Sair de lá implicava um sem número de justificativas, inacessíveis às maiorias. Desrespeitá-las, quase sempre significava a morte ou o exílio para sempre.

Certamente que muitos dos que comemoraram a queda do famoso muro, vindos do Leste, hoje, já não vêem as coisas do mesmo modo. A interdição os fazia imaginar que o paraíso estava do lado de lá. Rapidamente, eles vieram a descobrir que teriam pela frente novos problemas, alguns mais cruéis do que os dramas que existiam, inegavelmente, em seus países de origem. Trocaram a dura vida do socialismo real, pelos problemas típicos do capitalismo ordinário: desemprego, carestia, alienação e falta de esperança.

Em todos os casos, mesmo com diferenças abissais, o que se quis controlar foi o sagrado direito de ir e vir. A construção e a manutenção dos mesmos muros resultaram, como nos velhos burgos medievais, no isolamento parcial de ambos os lados, filtrando-se o que se desejasse deixar entrar ou sair. O velho e liberal ditado de "deixar passar", acompanhado pelo não menos famoso "deixar fazer", perdeu substância, apesar das retóricas oficiais dizerem que o muro sempre foi para defender a paz, o progresso e a civilização. 

Os dois muros contemporâneos jamais conseguiram o mesmo destaque nas mídias. A presença de ambos implica mortes recorrentes e na negação radical de direitos humanos básicos das populações envolvidas. Entretanto, as grandes mídias pouco falam dos mesmos. O de Israel, que faz parte da estratégia político-militar do país, ainda aparece mais, sem maiores explicações. O dos EUA é um fantasma que vaga no universo criado pelas mídias. Por vezes, há alguma menção, mas são raras reportagens investigativas, documentários etc. Há uma clara interdição sociomidiática de se problematizar a existência destas construções. 

Novos muros vêm sendo vistos como solução para problemas sociais e políticos. No Rio de Janeiro, a recente idéia de construí-los separando comunidades faveladas do resto da cidade deixou de ser um projeto para se transformar em uma iniciativa concreta. São ainda poucos os já acertados, considerando-se que no Rio existem mais do que 600 comunidades deste tipo. Imagine-se a forte circulação de recursos econômicos que estas obras irão causar. O custo do ódio não é pequeno. A importância desta iniciativa é, sobretudo, política, pois indica o modo claramente excludente que o problema social é pensado pelos que governam a cidade e o Estado.

A lógica do gueto já existe nestas comunidades. Murá-las significa sublinhar uma concepção de política habitacional fortemente vinculada à idéia da exclusão. Estas construções falarão, mesmo que mudas. Dirão a todos, que o poder público e parte de seus apoios sociais imaginam os moradores destas comunidades como intrusos, que não são olhados com simpatia, a não ser para vender barato suas capacidades de trabalhar na cidade. Eles seriam, segundo as mesmas fontes de poder, os responsáveis pelo fim do verde dos morros e pelo crescimento desordenado de suas comunidades. Vender a iniciativa dos muros como ‘ecológica’ consiste em piada de mau-gosto feita por alguém que detesta a existência de pobres, favelas etc.

A forte especulação imobiliária, que trouxe o caos para cidade, passa como algo natural e símbolo do progresso, não lhe sendo nada cobrado. O que as favelas e favelados fazem, comparando-se com o desenvolvimento desordenado da cidade, é muito pouco. Os verdadeiros destruidores das maravilhas ecológicas do Rio de Janeiro, em um processo de aproximadamente meio século, foram os que se apropriaram e construíram sem quase nenhum planejamento, beneficiando a alguns e destruindo as possibilidades de livre convívio com a natureza de milhões. 

As comunidades de favelados sempre chegaram depois do estrago que já havia sido feito. Foi assim na Zona Sul da cidade, bem como na Zona Oeste e nas demais localidades urbanas cariocas. Não há como culpar os pobres por aquilo que os ricos fizeram e continuam a fazer. Esta inversão é no mínimo um modo pouco criativo de eximir as culpas dos verdadeiros responsáveis pelos problemas da cidade. 

Os pobres vão morar onde existe trabalho nas proximidades e espaço para edificar. Não se importam de ocupar, com muita inventividade, os lugares mais íngremes, insalubres e apertados. Constroem como podem na pugna diária pela sobrevivência. Encontram seus meios e modos de conviver com a exclusão imposta e sem solução.

Se não houvesse uma massa de milhões de desempregados, subempregados, trabalhadores mal-pagos e outros vivendo com nada ou com pouco dinheiro, certamente, as favelas seriam menores ou não existiriam. Não se trata de romantizá-las e sim de compreendê-las nos contextos em que foram criadas e se desenvolveram. Nelas deságuam os problemas do Brasil, isto inclui o problema da reforma agrária e da necessidade de uma política de renda mínima e de pleno emprego. 

A histeria dos que odeiam as favelas remete para o problema da não aceitação das diferenças e da idéia problemática de resolver problemas sociais sem ir às suas raízes. Este ódio imenso é, no Brasil, bem antigo, remontando à época da escravidão. Nesta, origem de base das favelas cariocas modernas, gostava-se do trabalho escravo e de seus lucros, mas odiava-se a presença física dos mesmos. Eles deveriam ficar em seus lugares, possivelmente, embaixo da terra, vivendo como formigas e vindo ao solo apenas para trabalhar. Como isto não é possível, busca-se a compensação por meio do preconceito e pelo mais terrível ódio de classe.

Ao que parece entraremos na história mundial como novos construtores de "muros da vergonha", como já não bastasse a lógica dos condomínios, ruas e casas gradeadas e supervigiadas. Desta vez, optou-se para transformar algumas comunidades pobres em presídios abertos. O problema é tão grave, que não demorará chegar o dia de se ver favelas antes e depois dos muros, a não ser que a realidade socio-econômica de seus habitantes seja alterada. É verdade que é comum que o crime comum mais facilmente se homizie nas comunidades pobres. Entretanto, também é verdadeiro, que a grande maioria de seus habitantes é composta por simples trabalhadores que merecem respeito.


Luís Carlos Lopes é professor.

Retirado de www.cartamaior.com.br